segunda-feira, 11 de junho de 2012


OS VIVOS E OS MORTOS

CONTO DE TAGORE

A viúva Kadambini, cunhada de Babu Saradashankar, proprietário de terras em Ránihat, não tinha mais ninguém de sua família. Um por um a morte levara a todos. Sem marido e sem filhos, já não contava também com parentes próximos na família na qual ela se casara. Um sobrinho, filho de Saradashankar, era a única pessoa querida que lhe restava. A mãe, quando esse menino nasceu, passara por uma longa doença, e foi assim que a tia Kadambini se encarregou de educá-lo. Quando se cria um filho de outra pessoa, às vezes nos apegamos mais a ele do que a um filho legítimo, pois de um simples protegido a sociedade nada exige, e nesse caso só a afeição prevalece. Mas a afeição, que não tem como fazer valer seus direitos em face do mundo exterior, prescinde por isso mesmo de provas que a corroborem. Quem quer que dê sua afeição já se obriga a querer com redobrado ardor seu tesouro, que lhe pertence apenas de uma maneira aleatória.
Foi assim que Kadambini entregou toda a ternura em sua alma ao menino. Mas numa noite do mês de Sravan bruscamente ela morreu. Seu coração parou de bater ter, sem que ninguém soubesse a causa, Ao redor por toda a parte o tempo prosseguia seu curso, mas para aquele coração de mulher, tão meigo, o relógio. Perdeu todo o sentido. Por temer complicações com a polícia, o proprietário de terras dispensou cerimônias. Mandou que quatro empregados brâmanes removessem rapidamente o corpo, para a cremação.
O campo de cremação de Ranihat era muito afastado das residências da aldeia. Apesar de imenso, não dispunha senão de uma choupana, na beira de um açude, e um baniano imponente não longe dali. Outrora, fora cortado por um rio, cujo leito agora estava totalmente seco. O açude, artificial, ocupava uma parte do antigo curso, e para todos ele era o rio sagrado.
Os quatro homens depositaram o corpo na choupana c aguardaram a chegada da lenha destinada a fogueira. A espera pareceu-lhes tão longa que dois deles, Nitai e Gurucharan, foram averiguar a causa do atraso. Bidhu e Bonomali ficaram lá, tomando conta do corpo.
Era uma noite escura de Sravan, não se avistando uma só estrela entre as nuvens densas do céu. Na lúgubre choupana, sem falarem nada, os homens aguardavam. Um deles se lembrara de levar na ponta do xale, bem amarrados, uma vela e fósforos; mas não conseguiu acendê-los, malgrado várias tentativas., porque os fósforos estavam úmidos. O candeeiro, por sua vez, há muito que se apagara.
Após o prolongado silêncio, um dos homens sugeriu: — Não seria nada mau, não é, se a gente tivesse o que enfiar num houka. Na pressa, eu não trouxe nada.
O segundo disse: Bem, eu posso ir buscar o que é preciso, sem me demorar.
Bidhu compreendeu que a intenção de Bonomali era se safar. Por isso, disse:
— E você acha que eu vou ficar aqui sozinho! ?
De novo se fez silêncio entre eles. Os minutos pareciam tão longos quanto as horas. Cada qual, em pensamento, tratava dos piores nomes possíveis os dois companheiros que haviam partido a procura da lenha. E ambos começaram a
nutrir a mesma suspeita: a de que eles deveriam estar, sem dúvida, confortavelmente instalados nalgum canto, fumando e conversando a vontade.
Nenhum barulho. Ouvia-se apenas o contínuo canto dos grilos e o coaxar dos sapos, vindo da beira do açude. Quase imperceptivelmente, a padiola mexeu: dir-se-ia que o corpo tinha mudado de lado.
Bidhu e Bonomali, ambos tremendo, passaram a invocar o nome de Deus. Um suspiro profundo, de repente, ecoou na choupana. Bidhu e Bonomali pularam no mesmo instante para fora e fugiram na direção da aldeia. Após correrem quase três quilômetros, encontraram-se com os dois companheiros, que já vinham voltando com um candeeiro. De fato, eles tinham ido fumar, e nada apuraram de preciso a respeito da lenha. Comunicaram no entanto que havia árvores sendo derrubadas e que mais cedo ou mais tarde a lenha ia ser mandada. Bidhu e Bonomali contaram-lhe então o que se passara na choupana. Incrédulos, Nitai e Gurucharan zombaram da narrativa e aborreceram-se com os outros dois, acusando-os de não terem cumprido com o dever.
Sem perderem um minuto, os quatro homens se dirigiram para a choupana do campo de cremação. Ao entrarem, constataram que o corpo tinha desaparecido. Examinaram a padiola vazia, entreolhando-se. Teriam os chacais carregado a morta? Mas nem mesmo o pano que a cobria se encontrava mais lá. Os homens saíram para olhar em volta. Perto da entrada da choupana, viram pegadas frescas na lama — e eram de pés pequenos, de mulher.
Babu Saradashankar era um patrão difícil de contentar; ninguém tinha a menor esperança de levá-lo a acreditar naquela história de fantasma. Os quatro discutiram então o assunto e concluíram que o melhor seria dizer que a cremação fora cumprida a risca.
O dia já raiava quando os quatro comunicaram aos homens que afinal vinham chegando com a lenha: tendo em vista o atraso, a cremação já fora feita, sem esperar por eles. Na choupana, ainda havia umas achas de reserva... Era muito improvável que alguém duvidasse dessa versão dos fatos, pois um morto não é tão precioso assim, que dê para atrair um ladrão.
E possível, como tão bem se sabe, que um corpo pare de dar sinais de atividade, sem que já esteja no entanto desprovido de vida; no momento oportuno, a vida se manifesta de novo retomando suas funções. Kadambini não estava morta: suas funções vitais tinham apenas sofrido uma parada brusca, mas temporária, por alguma razão desconhecida.
Quando ela recobrou consciência, deu por si mergulhada na escuridão da noite. Notou que não era ali, naquele lugar, que costumava dormir, e gritou pela cunhada: "Didi!" Nas trevas da choupana, ninguém lhe respondeu. Muito assustada, ela se ergueu um pouco e sem demora lembrou-se de sua cama, de uma súbita dor no peito e da sensação de que estava sufocando. Lembrou-se também de que a cunhada se achava junto ao fogão, esquentando leite para o filho, quando ela, Kadambini, não aguentando mais ficar em pé, deixara-se cair com força na cama. A respiração já lhe faltava, mas ela ainda tivera força para pedir:
Traga o menino aqui, minha irmã, que estou passando muito mal.
Em seguida, tudo ficou tão preto como se nas páginas de um caderno houvesse sido derramado um tinteiro cheio. A consciência de Kadambini e suas lembranças todas identificaram-se num só instante com as letras do livro aberto do universo. Teria o menino, uma última vez, a chamado ainda "Titia", com sua voz tão meiga. Teria ela obtido do mundo conhecido essa derradeira provisão de ternura, para sua longa viagem pelo desconhecido! Disso, a pobre viúva não chegou a lembrar.
Pensou primeiro que o domínio lendário da morte era feito. dessa obscuridade e dessa solidão sem fim. Nada havia para ver, nada para escutar, nenhuma ocupação a assumir: bastava apenas ficar desperto por toda a eternidade, como ela se encontrava nesse exato momento.
Depois um vento fresco, daqueles que anunciam a chuva, pôs-se a soprar pela porta aberta e ela ouviu os sapos coaxando: num instante, imagens de todas as estações chuvosas que atravessara desde a infância agitaram-se em sua memória, com viva intensidade, e ela pôde sentir a íntima proximidade do mundo. Graças a um raio, numa fração de segundo distinguiu o açude, o baniano, o campo imenso e ao longe uma fileira de árvores. Recordou-se de que as vezes viera se banhar nesse açude, em dias de ritual, e que a visão dos cadáveres, nesses dias, tornava a ideia da morte, para ela, uma ideia de horror. "Tenho de voltar para casa", pensou, mas logo se corrigiu: “Não estou mais viva, não vão me querer mais lá, pois eu poderia ser um portador de desgraças. Não passo agora de meu próprio fantasma. Estou banida do reino dos vivos.
Se não fosse verdade, como teria conseguido ir, a uma hora tão tardia da noite, dos aposentos tão bem vigiados de Saradashankar até aquele campo de cremação? Por outro lado, se o ritual ainda estivesse inconcluso, onde estariam as pessoas encarregadas da cremação? Os últimos instantes de sua vida na casa iluminada de Saradashankar vieram-lhe novamente ao espírito e, surpreendendo-se sozinha no campo desolado e escuro, impressionada pelo contraste, compreendeu que já não fazia parte da comunidade humana:
— Sou uma sinistra portadora de mau agouro, sou fantasma de mim mesma.
Convencida dessa idéia, ela logo se deu conta de que todos os vínculos que a prendiam as regras desse mundo tinham sido brutalmente rompidos. Sentiu uma força extraordinária, percebeu a liberdade de que agora dispunha para ir aonde quisesse e fazer o que lhe desse na telha. Ao manifestar-se um sentimento tão insólito, levantou-se como louca, saiu as pressas da choupana e lá se foi pelo campo de cremação, nada apreensiva e livre de timidez.
com a interminável caminhada, seus passos diminuíam e o corpo ia sentindo cansaço. Os campos não terminavam; de vez em quando ela transpunha arrozais onde a água chegava a lhe bater nos joelhos. Ao romper o dia, deu com passarinhos cantando num bambuzal que estava perto de um amontoado de casas.
(Um estranho medo a dominou então. Que novas relações teria com o mundo e com os vivos! Não sabia de nada. Enquanto andara pelo campo de cremação e o negrume daquela noite chuvosa, sentira-se em seus próprios domínios e não conhecia angústia. Mas agora, A luz do dia que nascia, o aglomerado de poucas casas surgia como um lugar que lhe inspirava pavor. Os homens temem as almas do outro mundo, como as almas, também, temem os homens! Cada uma dessas duas espécies habita a margem de um rio — que é a morte. Com a roupa suja de lama, a aparência transtornada por uma noite insone e as ideais estranhas por que fora invadida, Kadambini tinha tudo para assustar as pessoas; os garotos não hesitariam em jogar-lhe pedras. Por sorte, foi um homem de boa família, que ali passava, o primeiro a vê-la. O homem se aproximou e indagou lhe.
— Aonde vai, mãe, sozinha e nesse estado, a senhora que parece ser de família digna? Kadambini olhou-o fixamente sem dizer nada, pois nenhuma resposta lhe ocorria. O fato de ainda ser desse mundo, de ter vestígios de nora bem casada e estar trilhando um caminho no campo, diante de um passante que a interrogava, tudo isso lhe pareceu absolutamente irreal. O homem insistiu: — Diga-me onde é sua casa, que eu mesmo levo a senhora até lá. Kadambini refletiu. Sua casa paterna já não existia e voltar para a família do sogro estava fora de questão. Lembrou-se então de uma velha amiga de infância, Jogmaya. Embora afastadas desde a adolescência, as duas se escreviam dc quando cm quando. Essa correspondência as vezes tomava as dimensões de uma batalha afetiva; Kadambini afirmava a Jogmaya que era sem dúvida sua melhor amiga, mas esta se queixava de uma certa frieza da parte dela. Estava porém claro, dos dois lados, que elas não mais se deixariam, se porventura surgisse uma ocasião que as reunisse. Kadambini disse pois ao passante: — Quero ir para a casa de Babu Sripaticharan, em Nishindapur. O homem ia para Calcutá. Nishindapur não era muito perto, mas ficava em seu caminho. E ele assim se incumbiu pessoalmente de levar a jovem mulher até a casa de Sripaticharan.
As duas amigas se reencontraram — e a princípio não se reconheceram. Mas Jogmaya, tão logo notou no rosto da visitante os traços da antiga adolescência, exclamou:
— Santa mãe, que sorte a minha! Nunca podia imaginar uma visita sua. Mas me conte, como veio parar aqui. A família de seu sogro concordou com essa saída!
Kadambini custou um pouco a falar:
— Não me peça notícias da família do sogro, minha amiga. Dê-me apenas um quarto de empregada num canto da sua casa. Farei para vocês tudo o que for preciso.
Jogmaya respondeu:
— Santa mãe, mas que ideia! Ficar aqui como empregada! Mas você é minha amiga, minha...
Nesse exato momento, Sripaticharan entrou na sala. Kadambini o encarou por segundos e foi saindo sem pressa. Não cobriu a cabeça, não fez nenhum sinal de respeito nem demonstrou qualquer incômodo.
Temendo que Sripati formulasse uma opinião negativa sobre sua amiga, Jogmaya empenhou-se por lhe dar diferentes explicações possíveis do comportamento de Kadambini. Para o espanto da esposa, Sripati se deu por satisfeito.
Kadambini portanto fora ver sua amiga, mas não pôde estabelecer contato com ela. A morte as separava. Quem tem dúvida a respeito de si mesmo, e permanentemente se observa, já não pode de fato ir ao encontro do outro. Kadambini, ao mesmo tempo em que analisava o rosto da amiga, perdia-se em estranhas reflexões:
Essa mulher com seu marido, sua casa, parece habitar muito longe, nalguma parte de outro planeta. É uma terraquea, com sua simpatia, sua afeição, seus deveres, e eu sou uma sombra do nada. Ela está no país da vida; eu, no meio da eternidade.
Jogmaya também percebeu alguma coisa estranha no ar, sem compreender absolutamente nada. O mistério não seduz as mulheres. O indefinível pode inspirar o poeta, ou o filósofo, mas viver com ele é impossível. É por isso que quando uma mulher não compreende uma situação, ou uma pessoa, ou bem ela corta os laços com o objeto de sua incompreensão, eliminando-o, ou bem o remodela a fim de o transformar em algo que lhe possa ser útil. Se o êxito não a contemplar, nessa alternativa, o incompreendido será tratado por ela com estrito rigor.
Quanto mais enigmático se tornava o comportamento de Kadambini, mais Jogmaya se enfurecia com ela: "Em que embrulhada fomos nos meter", pensava.
Kadambini, que fracassava em escapar do seu eu, começou a ter medo de si mesma. As pessoas que temem assombrações temem igualmente o que possa lhes acontecer pelas costas, ou seja, o que os olhos não vêem. Mas Kadambini, pelo contrário, não tinha o menor medo das coisas exteriores, sua maior fonte de angústia era ela mesma. De tarde, sozinha, punha-se as vezes bruscamente a gritar; de noite, bastava-lhe ver sua sombra na luz que ela se alarmava.
Em contato frequente com tanta ansiedade e temor, todas as pessoas da casa foram tomadas de estranha apreensão. Os criados e até Jogmaya começaram a ver, por toda parte e a qualquer hora, almas do outro mundo.
Certa vez, por volta da meia-noite, Kadambini saiu chorando de seu quarto e dirigiu-se ao de Jogmaya, cuja porta abriu para falar com ela:
— Minha boa irmã, ouça-me pelo amor de Deus, não me deixe sozinha.
Jogmaya, possuída pelo medo, ficou com raiva. Teve vontade de expulsá-la imediatamente dali. Mas Sripati, comovido, consolou-a e procurou acalmá-la: deram-lhe o quarto contíguo ao deles.
No dia seguinte, sua esposa mandou chamá-lo numa hora incomum. E, sem preâmbulos, começou a repreender o marido:
— Que espécie de homem você é afinal! Ternos aí essa mulher, que saiu da casa do sogro e veio se instalar na sua. Isso já faz um mês, ela não pensa em levantar acampamento e você não diz nada. Que história é essa, qual a sua intenção? Vocês homens, vocês são realmente uma raça a parte.
De fato, os homens se predispõem em geral pelas mulheres, e são justamente elas que os reprovam por isso. A compaixão de Sripati por Kadambini, essa mulher indefesa mas bonita, ultrapassava um pouco os limites. Ele estava pronto a jurar, pela cabeça da própria esposa, que não havia nada, mas seu comportamento demonstrava o contrário.
Segundo Sripati, era fora de dúvidas que a família do sogro havia maltratado essa viúva sem filhos. Não suportando mais as brutalidades, certamente ela fugira para buscar refúgio em sua casa. Como poderia ele abandonar uma mulher que não tinha pai nem mãe? Eximiu-se por isso de fazer averiguações; não sentia a menor vontade de molestar Kadambini, colocando-lhe perguntas sobre a desagradável questão.
Sua esposa despachou-se, em contrapartida, e acionou todos os meios que pôde para despertar no marido o senso do dever, que ela julgava enfraquecido. Ele acabou por compreender que era preciso, para restabelecer a paz em seu lar, enviar um mensageiro a família do sogro de Kadambini. Mas uma carta escrita hs pressas poderia não dar o resultado esperado. Era pois melhor que cle fosse a Ranihat, informar-se pessoalmente, e lá mesmo decidisse a conduta a adotar.
Tendo seu marido partido, Jogmaya disse a Kadambini:
sua presença aqui, minha querida, não é bem vista. Que vão dizer os outros!.
com um olhar muito sério para Jogmaya, Kadambini respondeu-lhe:
— Que tenho eu com a opinião dos outros!
A resposta surpreendeu Jogmaya, que, um pouco irritada, replicou:
— Você pode não ter nada, mas nós, bem, nós vivemos com os outros. Sob que pretexto vamos manter em casa a nora de uma outra família?
— E onde está essa família? — disse Kadambini.
— Que diabo, que está dizendo essa infeliz! — pensou Jogmaya.
Falando lentamente, Kadambini continuou:
— Sou desse mundo, por acaso? Sou dessa mesma espécie? Olhe, vocês riem, choram, amam, cada qual cuida dos seus afazeres, mas eu apenas contemplo. Vocês são seres humanos, eu sou uma sombra. Não sei por que Deus me colocou no meio de vocês nessa terra. Vocês têm medo de que eu perturbe suas brincadeiras e risos, enquanto eu não chego a compreender que relação mantenho com vocês. Como Deus não previu um lugar para nós, giramos ao redor de vocês e estamos condenados a vagar assim, quando se rompem nossos vínculos.
Pelo olhar de Kadambini, Jogmaya captou algo de sua mensagem, se bem que o essencial lhe escapasse. Não soube o que responder e também não fez outras perguntas. Foi logo se afastando, inquieta e com um ar desconfiado.

Eram quase dez horas da noite quando Sripati voltou de Ranihat. Uma chuva diluviana inundava as terras; o barulho da água criava uma impressão de que a chuva, como também aquela noite, jamais iriam passar.
Jogmaya disse:
— E então?
Sripati respondeu:
- Puxa, é uma longa história! Depois eu conto.
Mudou de roupa, jantou, fumou seu narguilé e foi para a cama. Parecia muito preocupado.
Jogmaya soube controlar sua curiosidade. Assim que se deitaram, perguntou-lhe, porém:
— Bem, agora me conte tudo.
Sripati disse-lhe:
- Parece que você se enganou.
Ouvindo isso, Jogmaya se aborreceu, e muito, pois as mulheres nunca estão enganadas! Se chegam porventura a cometer um engano, de modo totalmente excepcional, o dever de um homem sensato é não levá-lo em consideração, aconselhando-se além disso que ele mesmo assuma esse engano. Um pouco exaltada, Jogmaya replicou:
- E em que foi que me enganei!
Sripati respondeu-lhe:
- A mulher a quem você deu abrigo não é sua amiga Kadambini.
E normal que uma observação como essa, sobretudo se parte do marido, seja causa de irritação. Jogmaya explodiu:
- Como, não conheço então minha amiga? Será você, talvez, que me fará conhecê-la? Ora que idéia!
Sripati tentou explicar-lhe que, no caso presente, não se tratava de uma idéia, mas sim de um fato concreto. Ele não tinha a menor dúvida, com efeito, de que a amiga dela, Kadambini, estava morta.
Jogmaya disse:
Não é possível, deve haver algum equívoco aí. Ou bem você errou de lugar, ou bem não entendeu direito. Isso não se sustenta. Além do mais, por que resolveu ir lá em pessoa? Bastaria ter escrito urna carta, que tudo se esclareceria.
Foi grande a decepção de Sripati, ao ver a falta de confiança ostensivamente exibida por sua esposa, que punha em dúvida a eficiência de sua atuação. Ele lhe deu então provas detalhadas, mas que de nada adiantaram. Ora de acordo, ora em desacordo, os dois se manifestaram assim, alternadamente, até as duas da manhã.
E certo que não havia divergência entre eles sobre a necessidade de Kadambini sair imediatamente da casa. Ele, por achar que a hóspede havia mentido o tempo todo a verdadeira identidade; ela, por estar convencida de que Kadambini fugira do domicílio conjugal em consequência de um escândalo. Nenhum dos dois dispunha-se porém a ceder em relação ao ponto contestado. Marido e mulher falando alto, ambos se esqueciam de resto de que Kadambini dormia no quarto ao lado. Ele dizia: — Ora essa, que barafunda! Pois se eu ouvi com meus ouvidos! E ela, com a mesma firmeza: — Como posso acreditar! Pois se eu a vejo com meus olhos! Por fim, Jogmaya perguntou: — Muito bem, e quando foi que ela morreu?! Estabelecendo uma contradição entre a data de uma das cartas de Kadambini e a de sua morte, ela esperava obter a prova de que seu marido fora enganado.
Como data do falecimento, Sripati indicou — tiveram de calcular um pouco para reconstituí-la — a própria véspera do dia em que Kadambini chegara a casa deles. Jogmaya teve um arrepio, com a exatidão, e seu marido também sentiu alguma coisa esquisita.
Nesse instante, a porta de seu quarto se abriu, um golpe de vento apagou a chama da luz e a escuridão foi total. Kadambini entrou. Eram duas e meia da manhã. Lá fora, a chuva não dava trégua. Kadambini falou de forma sintética:
— Olhe, eu sou Kadambini sim, a sua amiga. Só que não estou mais viva. Eu estou morta.
Jogmaya soltou um grito de horror e Sripati não conseguiu articular urna só palavra.
— Mas que culpa tenho eu, a não ser estar morta! Se meu lugar não é nesse mundo, nem no outro, digam-me então aonde eu posso ir?
Deixando o casal perplexo, Kadambini saiu do quarto escuro, para procurar seu lugar no universo.

Não é fácil saber como Kadambini voltou para Ranihat. A princípio, não quis que ninguém a visse. Passou o dia em jejum num templo abandonado e em ruínas. No fim da tarde, o céu escureceu mais cedo, como costuma acontecer na estação das chuvas. As pessoas da aldeia, temendo uma tempestade, apressaram-se para abrigar-se em suas casas. Foi então que Kadambini pôs-se a caminho. Chegando à porta de entrada da casa da família do sogro, seu coração batia forte. Teve o cuidado, antes de entrar, de envolver toda a cabeça e o peito numa parte do seu sari. Os porteiros, tomando-a por uma criada, não a incomodaram. A chuva já estava caindo, o vento açoitava.
A dona da casa, a esposa de Saradashankar, jogava cartas com uma irmã mais nova. Havia uma empregada na cozinha. O menino, doente, com uma febre que so há pouco cedera, dormia no quarto. Não há como dizer que impulso a levara aquela casa, pois nem ela o sabia. Só de uma coisa estava certa: da vontade que tinha de rever o menino. Queria1 apenas contemplá-lo. Depois, o que faria, qual seria seu destino, em nada havia pensado.
A luz do candeeiro, viu que ele dormia com as mãos fechadas, e que estava magrinho. Uni intenso desejo ardeu em seu coração: o de estreitar contra si, ao menos por uma vez, aquele menino fraco. Kadambini refletiu a seguir:
Quem será que cuida dele, agora que não estou mais aqui! A mãe é dada a agitação, gosta de bater papo e jogar. Antes, deixava tudo por minha conta, e ficava tranquila. Aliás, ela nunca cuidou de uma criança. Quem lhe dará a
atenção de que ele precisa!
O menino virou na cama, meio dormindo: — Titia, me dê um pouco d' água. Kadambini exclamou: — Oh, meu tesouro, você não se esqueceu da tia! Com um gesto rápido, apanhou a jarra de terracota e, pegando o menino nos braços, deu-lhe de beber.
Cheio de sono, ele não estranhou que a tia lhe desse água, como de hábito. Kadambini pôde enfim dar-lhe também o beijo há tanto esperado, antes de recolocá-lo na cama. O menino abriu os olhos, retribuiu o beijo e perguntou-lhe:
você estava morta, titia? Ela confirmou:  — Estava sim, meu filho. E o menino quis saber:
- Você voltou para me ver? E você não vai morrer nunca mais?
Antes que ela tivesse tempo de responder, produziu-se um incidente. A empregada vinha entrando no quarto, com. um prato de mingau nas mãos, e de repente deixou tudo cair, caindo ela também com estrondo e um grito de espanto: — Santa mãe! Ao ouvir esse grito, a patroa jogou suas cartas na mesa e foi correndo acudir. Já na porta do quarto, ficou estatelada: não conseguia fugir nem dizer nada.
Na confusão, o menino ficou com medo começou a chorar e disse: — Vá-se embora, titia! Naquela noite, Kadambini enfim tomou consciência que não estava morta. A casa era a mesma, nada havia mudado; o mesmo era o menino querido, a mesma ternura, tudo estava tão vivo, para ela, quanto antes. Nenhum fosso se abrira, não havia distância entre ela esse mundo.
Na casa de Jogmaya, ela tivera a sensação de que sua amiguinha de infância já não mais existia. Mas hoje, ali no meio do quarto do sobrinho, compreendeu que a tia do menino não podia estar morta. 
Perturbada, virou-se para sua cunhada: 
Por que todo esse medo ao me ver, Didi? Olhe só, eu continuo a ser a mesma, a nora da casa! 
A patroa tremeu toda, desmaiou e caiu. Saradashankar, alertado por sua irmã, precipitou-se para o quarto. Juntando as mãos, disse a Kadambini: 
Por favor, irmãzinha, isso não é digno de sua parte! Satish é o nosso único herdeiro, por que lhe pôr mau olhado? Por acaso, para você, somos estranhos! Desde sua partida que ele vem piorando, não há como curá-lo. O tempo todo ele chama pela tia. Como você partiu desse mundo, eu lhe imploro para que rompa esse laço ilusório. Os seus últimos ritos, conforme a regra, serão realizados por nós. 
Não suportando essas palavras, Kadarnbini falou descontrolada: 
Não estou morta, garanto, não estou morta! Como fazer vocês compreenderem isso? Olhem, eu estou viva! 
Apanhou o prato de bronze, que estava no chão, e sentou-o na testa para se ferir. O sangue escorreu. Ela então disse: 
Estão vendo, estão vendo só como estou bem viva! 
Saradashankar continuava imóvel como uma estátua. O menino, aterrorizado, gritava pelo pai. E as duas mulheres jaziam inconscientes. 
Kadambini enfim saiu do quarto, gritando forte: — 'Ouçam-me, não estou morta, não estou morta, garanto...
Depois, desceu as pressas pela escada e se jogou no lago do pátio interno. Do quarto no primeiro andar, Saradashankar ouviu nitidamente o mergulho.
A chuva varou a noite, continuou pela manhã e até o meio-dia ainda não dera trégua. Kadambini, matando-se, dava por sua vez a prova de que não tinha morrido.

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